domingo, maio 07, 2006

Laramie, Portugal


Uma entre muitas outras fotos, todas daqui

Pela sua actualidade e importância, aqui fica o texto de Fernanda Câncio publicado no Diário de Notícias de ontem.

É um fosso com mais de dez metros, cheio de água suja, num prédio inacabado do Porto. Foi aí que a encontraram: calças nos joelhos, queimaduras, sinais de espancamento. Os miúdos dizem que lhe fizeram o que quiseram durante dias - dois, três? -, que lhe arremessaram pedras e pontapés, lhe enfiaram paus no ânus, a insultaram e seviciaram até lhes parecer que já não respirava. Aí, dizem, resolveram livrar-se do corpo.A autópsia diz que ela morreu afogada. O mais certo é, aliás, que diga ele. O corpo pescado do fosso tinha órgãos genitais masculinos e nos seus papéis o nome de Gisberto Salce Júnior, mesmo se havia seios cirurgicamente implantados e um rosto que foi o de uma mulher bonita. Na morte, talvez fosse outra coisa - um mutante, uma aberração atreita a estremecer conceitos e atrair violências.Os miúdos têm entre 13 e 16 anos. O mais velho foi posto em prisão preventiva e libertado ao fim de dois meses - fez ontem uma semana. A investigação da PJ não consubstancia a tese de homicídio e os outros testemunharam que ele esteve lá, fez parte, mas não teve culpa.
Valerá a pena lembrar que os jovens sabem que a partir dos 16 anos se paga à séria pelos crimes. Que, como as pessoas crescidas, mentem e tanto mais quanto maior o sarilho. Mas isso nem é o que mais importa: o que mais importa é a óbvia vontade, desde o início, de não querer acreditar que seja possível um bando de "miúdos nossos" ter feito aquilo. Num país onde uma mulher e o seu irmão foram condenados a 20 anos de prisão pela morte da respectiva filha e sobrinha, uma criança cujo corpo nunca apareceu, com base numa coisa chamada "convicção", um corpo pode apresentar irrefutáveis provas de tortura e homicídio que coincidem com a confissão dos suspeitos e tudo se encaminhar para não haver culpados.
E se fossem culpados, que faríamos com eles? O que é que se faz com adolescentes que se comprazem em levar uma pessoa à agonia e em vê-la agonizar? Proíbem-se-lhes os Morangos com Açúcar e a playstation durante um mês? Obrigam-se a uma "conversa séria"? Curioso: nada transpirou do que dizem os miúdos para justificar o que confessam ter feito. Não lhes perguntaram, eles não responderam, ou a resposta é demasiado terrível?
E, no entanto, "eles têm de ser os nossos professores", como diz o padre católico em Laramie, a peça em cena no Maria Matos sobre o homicídio, em 1998, nos EUA, de um homossexual de 21 anos por dois jovens: "Como é que vocês aprenderam isso? O que é que nós, enquanto sociedade, fizemos para vos ensinar isso? Acho que seria fantástico se o juiz dissesse: 'Para além da vossa sentença, têm de contar a vossa história.'"

1 Comments:

Blogger mulheres_estejam_caladas said...

o teu é muito profundo. Como vivo em madrid não segui o caso, mas o que li nos blog fez-me estremecer de horror...acho que o texto tem razão... o que andamos nós a ensinar às nossas crianças... e que mensagem lhes vamos pensar se não houver condenação... que há umas pessoas que se podem matar e outras não?... que há pessoas que são menos iguais que outros e por isso que se fizerem sofrer não faz mal porque não têm tanto direitos? Vergonha...sinto-me solidária com a vossa causa...

11:04 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home